Perfeita Simetria
Um sorriso de batom vermelho
e uma piscadela repleta de segundas, terceiras e quartas intenções. Muitas
vezes é o suficiente e muitas, não. Depende de como será a próxima boneca.
Depende do seu tamanho, sexo, idade e cor. Infinitas variáveis que são
enfrentadas na hora em que aparecem, de improviso.
Elvira não se lembra de
quando descobriu que as amava, mas se lembra de como começou a fabricá-las. As
memórias e sentimentos da primeira vez que praticou seu dom permanecem
vivamente talhados em sua alma. Afinal, a primeira vez a gente nunca esquece.
Era
um dia chuvoso de natal e a milésima boneca que havia ganhado tinha a aparência
real demais para ela não passar horas, dias, admirando-a. Tudo nela era de
verdade. Feita em tamanho real, cabelo real, até os olhos eram assustadoramente
humanos. Elvira encontrara seu grande amor.
-
Custou os olhos da cara. - A avó havia dito. Elvira deveria tomar cuidado
especial com ela, pois era francesa. E a garota concordava. Abella seria seu
nome porque sua face alva e simétrica era a mais bela de todas. Desde então,
sua sede por mais e mais beleza só se intensificou.
Enquanto relembrava a
história, os olhos astutos buscavam a mais bela face dentre todas. Talvez
conseguisse superar a modelo anterior. Outro sorriso surgiu quando Elvira se
lembrou do último espécime. Uma negra alta de olhos cor de chocolate intenso e
sorriso brilhante. Graças à ela, a beleza de Acácia seria imortalizada numa das
mais perfeitas bonecas que quaisquer mãos algum dia haviam criado
Acúrio
era o nome dele. Sua primeira criação. Por que um homem? Porque Elvira havia se
cansado de bonecas. Queria um par para suas belas garotas. E precisava de
alguém ligeiramente feio. De maneira alguma iria usar um deus grego para
primeiro modelo e cobaia. Primeiro pelo motivo de que a primeira tentativa é
sempre a pior e raramente dá certo. Não arruinaria a beleza. De forma alguma. E
segundo porque ela realmente odiava o garoto da sua sala. É bem verdade que seu
nome não era Acúrio, mas, depois de imortalizado, o nome de santo mártir seria
o ideal para o menino que queria ser padre.
O
boneco não deu muito certo. Na verdade, Acúrio foi um completo desastre. O erro
de Elvira, talvez, fosse ter derretido a cera por cima da pele já rígida. Ou
então ter deixado o interior intacto. O fedor ficou insuportável depois de um
tempo. Acúrio havia apodrecido de dentro para fora e ela se viu obrigada a
descartá-lo. Pobre Acúrio... O experimento que deu errado para que os próximos
saíssem perfeitos.
Um sorriso maior tomou conta
do rosto angelical. Elvira havia achado sua beleza fenomenal da noite. Ela
sorria tanto que seu nome seria Beatrice. Não dava para imaginar algo
diferente. A garota usava um top branco com uma saia preta que valorizava suas
curvas e sua pele clara. Talvez a deixasse com as mesmas roupas. Talvez...
A
completa ruptura com a piedade foi Acácio. O mais novo da longa lista de belos
rostos. O pequeno bebê de sete meses era tão lindo que Elvira não conseguiu se
conter. Esse sim durou. Ela já havia treinado algumas vezes para fazer com que
o bebê ficasse para sempre em sua estante.
Com
Acácio ela viu cada lágrima escorrer enquanto a cera derretida revestia a pele
sensível dos pequeninos e gorduchos membros. Abriu-o depois e esvaziou seu
corpinho para então encher de espuma. Ele lutou. Lutou pela vida, lutou bem
mais que os adultos. Mas em algum momento entre os dois processos, ele desmaiou
e Elvira não teve real coragem para se certificar se ele estava vivo ou morto.
Apenas continuou seu trabalho. Era o que ela deveria fazer. Seu dever.
Parou de andar quando viu
outra garota se aproximar de Beatrice. Ela era ainda mais alva que a amiga e
"Bianca" lhe veio à mente. Tão alva que doía as vistas. Seria um belo
espécime também. Sem dúvida, duas aquisições únicas, perfeitas.
Seus passos recomeçaram. Os
saltos a levavam até o meio da pista de dança diretamente para quem ela queria.
A excitação em sua barriga lhe dizia que tudo estava mais perto. Bem mais perto
e emocionante.
-
Carola...
-
Elvira, o que vai fazer? - Os olhos azuis estavam adoravelmente aterrorizados.
-
Sou Galdina, a que domina a beleza. Vou dominá-la, Carola. Trabalhar cada
aspecto do seu corpo até ele ficar perfeito. Perfeitamente belo e perfeitamente
simétrico.
Elisa
- agora Carola - engoliu em seco. A amiga estava completamente doida. Ela sabia
que morreria. Sabia que Elvira a mataria. E não tinha como escapar.
Um
grito histérico preencheu o quarto quando a mulher sentiu algo quente cobrindo-lhe
a pele das pernas amarradas. Sua pele queimava e a dor era excruciante. Impossibilitada
de movimentar-se, Carola gritava, gritava como nunca antes havia gritado.
Já
estava inconsciente quando foi aberta para ser preenchida com espuma. Mas não
morta. Ainda não.
Os
olhos de Elvira subiram até uma das diversas estantes e ela encarou o rosto de
Acácio. O anjo petrificado a olhava tristonho e, por um momento, os olhos de
Galdina se encheram de lágrimas. Acácio, o inocente, o sem maldade alguma,
assistia a tudo.
Ele
havia visto a cera escorrer pelos membros de cada uma das vítimas depois dele.
Havia visto o bisturi penetrar as diversas peles e havia visto as mãos
ensanguentadas retirarem estômagos, fígados, corações, línguas...
Acácio...
Ainda se lembrava das risadas, dos sorrisos desdentados e da inocência infantil
que ele exalava. Acácio foi seu mais amado companheiro. Seu pequeno anjo que
merecia ser mantido intacto.
E
era por isso que mantinha o boneco do irmão na sala de criação. Porque a beleza
e a inocência deveriam ser imortalizadas. A qualquer custo.
Suas
mãos foram aos instrumentos certos e Galdina começou a aperfeiçoar o rosto já
belo. Mediu cada distância de um lado do rosto para fazer o outro exatamente
igual. Numa perfeita simetria macabra.
Beatrice e Bianca haviam se
libertado por um infeliz acaso. Ou feliz, depende do ponto de vista. Ironia do
destino ou não, havia uma bituca de cigarro acesa no gramado da casa de Elvira
que, por sinal, é de madeira. Na verdade era, já que o fogo consumiu cada canto
do imóvel.
As três mulheres chegaram a
tempo de ver as labaredas incendiando tudo o que um dia havia sido de Elvira.
Ou Galdina, como preferirem. Os gritos femininos foram ouvidos muito, muito
longe dali enquanto a cera que cobria o rosto do irmão se derretia à sua
frente.
"...Acácio
também se foi. Nada sobrou do meu maravilhoso trabalho. O que é mais estranho é
olhar para dentro de mim e não me reconhecer em nenhuma parte. Não é o meu
reflexo no espelho e não tenho vontade de sorrir novamente. Me sinto um zumbi.
Meu coração queimou junto com as bonecas e minha mente se tortura com a
lembrança de tudo o que foi perdido. Inclusive Beatrice e Bianca. Deixei elas
irem. A noite "de garotas" foi cancelada, de qualquer forma.
Preciso
me reencontrar, voltar a viver, voltar a sorrir. Tenho que fazer a diferença e
não aguento olhar para todos esses rostos imperfeitos que me olham atentamente.
Eu tenho que fazer algo para que a beleza renasça.
Preciso
voltar a esculpir suas faces, criar a simetria perfeita, os seres perfeitos.
Meus bonecos devem ser imortais, assim como sua lembrança será imortal. A
beleza... Essa sim deve viver para sempre e acima de tudo.
Mas
não adianta chorar a cera derretida. Só me resta recomeçar."
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