Perfeita Simetria

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Perfeita Simetria


Um sorriso de batom vermelho e uma piscadela repleta de segundas, terceiras e quartas intenções. Muitas vezes é o suficiente e muitas, não. Depende de como será a próxima boneca. Depende do seu tamanho, sexo, idade e cor. Infinitas variáveis que são enfrentadas na hora em que aparecem, de improviso.

Elvira não se lembra de quando descobriu que as amava, mas se lembra de como começou a fabricá-las. As memórias e sentimentos da primeira vez que praticou seu dom permanecem vivamente talhados em sua alma. Afinal, a primeira vez a gente nunca esquece.


Era um dia chuvoso de natal e a milésima boneca que havia ganhado tinha a aparência real demais para ela não passar horas, dias, admirando-a. Tudo nela era de verdade. Feita em tamanho real, cabelo real, até os olhos eram assustadoramente humanos. Elvira encontrara seu grande amor.

- Custou os olhos da cara. - A avó havia dito. Elvira deveria tomar cuidado especial com ela, pois era francesa. E a garota concordava. Abella seria seu nome porque sua face alva e simétrica era a mais bela de todas. Desde então, sua sede por mais e mais beleza só se intensificou.


Enquanto relembrava a história, os olhos astutos buscavam a mais bela face dentre todas. Talvez conseguisse superar a modelo anterior. Outro sorriso surgiu quando Elvira se lembrou do último espécime. Uma negra alta de olhos cor de chocolate intenso e sorriso brilhante. Graças à ela, a beleza de Acácia seria imortalizada numa das mais perfeitas bonecas que quaisquer mãos algum dia haviam criado


Acúrio era o nome dele. Sua primeira criação. Por que um homem? Porque Elvira havia se cansado de bonecas. Queria um par para suas belas garotas. E precisava de alguém ligeiramente feio. De maneira alguma iria usar um deus grego para primeiro modelo e cobaia. Primeiro pelo motivo de que a primeira tentativa é sempre a pior e raramente dá certo. Não arruinaria a beleza. De forma alguma. E segundo porque ela realmente odiava o garoto da sua sala. É bem verdade que seu nome não era Acúrio, mas, depois de imortalizado, o nome de santo mártir seria o ideal para o menino que queria ser padre.

O boneco não deu muito certo. Na verdade, Acúrio foi um completo desastre. O erro de Elvira, talvez, fosse ter derretido a cera por cima da pele já rígida. Ou então ter deixado o interior intacto. O fedor ficou insuportável depois de um tempo. Acúrio havia apodrecido de dentro para fora e ela se viu obrigada a descartá-lo. Pobre Acúrio... O experimento que deu errado para que os próximos saíssem perfeitos.


Um sorriso maior tomou conta do rosto angelical. Elvira havia achado sua beleza fenomenal da noite. Ela sorria tanto que seu nome seria Beatrice. Não dava para imaginar algo diferente. A garota usava um top branco com uma saia preta que valorizava suas curvas e sua pele clara. Talvez a deixasse com as mesmas roupas. Talvez...


A completa ruptura com a piedade foi Acácio. O mais novo da longa lista de belos rostos. O pequeno bebê de sete meses era tão lindo que Elvira não conseguiu se conter. Esse sim durou. Ela já havia treinado algumas vezes para fazer com que o bebê ficasse para sempre em sua estante.

Com Acácio ela viu cada lágrima escorrer enquanto a cera derretida revestia a pele sensível dos pequeninos e gorduchos membros. Abriu-o depois e esvaziou seu corpinho para então encher de espuma. Ele lutou. Lutou pela vida, lutou bem mais que os adultos. Mas em algum momento entre os dois processos, ele desmaiou e Elvira não teve real coragem para se certificar se ele estava vivo ou morto. Apenas continuou seu trabalho. Era o que ela deveria fazer. Seu dever. 


Parou de andar quando viu outra garota se aproximar de Beatrice. Ela era ainda mais alva que a amiga e "Bianca" lhe veio à mente. Tão alva que doía as vistas. Seria um belo espécime também. Sem dúvida, duas aquisições únicas, perfeitas.

Seus passos recomeçaram. Os saltos a levavam até o meio da pista de dança diretamente para quem ela queria. A excitação em sua barriga lhe dizia que tudo estava mais perto. Bem mais perto e emocionante.


- Carola...

- Elvira, o que vai fazer? - Os olhos azuis estavam adoravelmente aterrorizados.

- Sou Galdina, a que domina a beleza. Vou dominá-la, Carola. Trabalhar cada aspecto do seu corpo até ele ficar perfeito. Perfeitamente belo e perfeitamente simétrico.

Elisa - agora Carola - engoliu em seco. A amiga estava completamente doida. Ela sabia que morreria. Sabia que Elvira a mataria. E não tinha como escapar.

Um grito histérico preencheu o quarto quando a mulher sentiu algo quente cobrindo-lhe a pele das pernas amarradas. Sua pele queimava e a dor era excruciante. Impossibilitada de movimentar-se, Carola gritava, gritava como nunca antes havia gritado.

Já estava inconsciente quando foi aberta para ser preenchida com espuma. Mas não morta. Ainda não.

Os olhos de Elvira subiram até uma das diversas estantes e ela encarou o rosto de Acácio. O anjo petrificado a olhava tristonho e, por um momento, os olhos de Galdina se encheram de lágrimas. Acácio, o inocente, o sem maldade alguma, assistia a tudo.

Ele havia visto a cera escorrer pelos membros de cada uma das vítimas depois dele. Havia visto o bisturi penetrar as diversas peles e havia visto as mãos ensanguentadas retirarem estômagos, fígados, corações, línguas... 

Acácio... Ainda se lembrava das risadas, dos sorrisos desdentados e da inocência infantil que ele exalava. Acácio foi seu mais amado companheiro. Seu pequeno anjo que merecia ser mantido intacto.

E era por isso que mantinha o boneco do irmão na sala de criação. Porque a beleza e a inocência deveriam ser imortalizadas. A qualquer custo.

Suas mãos foram aos instrumentos certos e Galdina começou a aperfeiçoar o rosto já belo. Mediu cada distância de um lado do rosto para fazer o outro exatamente igual. Numa perfeita simetria macabra.


Beatrice e Bianca haviam se libertado por um infeliz acaso. Ou feliz, depende do ponto de vista. Ironia do destino ou não, havia uma bituca de cigarro acesa no gramado da casa de Elvira que, por sinal, é de madeira. Na verdade era, já que o fogo consumiu cada canto do imóvel.

As três mulheres chegaram a tempo de ver as labaredas incendiando tudo o que um dia havia sido de Elvira. Ou Galdina, como preferirem. Os gritos femininos foram ouvidos muito, muito longe dali enquanto a cera que cobria o rosto do irmão se derretia à sua frente.


"...Acácio também se foi. Nada sobrou do meu maravilhoso trabalho. O que é mais estranho é olhar para dentro de mim e não me reconhecer em nenhuma parte. Não é o meu reflexo no espelho e não tenho vontade de sorrir novamente. Me sinto um zumbi. Meu coração queimou junto com as bonecas e minha mente se tortura com a lembrança de tudo o que foi perdido. Inclusive Beatrice e Bianca. Deixei elas irem. A noite "de garotas" foi cancelada, de qualquer forma.

Preciso me reencontrar, voltar a viver, voltar a sorrir. Tenho que fazer a diferença e não aguento olhar para todos esses rostos imperfeitos que me olham atentamente. Eu tenho que fazer algo para que a beleza renasça.

Preciso voltar a esculpir suas faces, criar a simetria perfeita, os seres perfeitos. Meus bonecos devem ser imortais, assim como sua lembrança será imortal. A beleza... Essa sim deve viver para sempre e acima de tudo.


Mas não adianta chorar a cera derretida. Só me resta recomeçar."

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